Governo não terá compensação de queda no IR, diz Everardo Maciel

O ex-secretário da Receita Federal Everardo Maciel disse que o governo federal não conseguirá compensar aumento da faixa de isenção do IRPF (Imposto de Renda da Pessoa Física).

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT)  mandou projeto de lei ao Congresso para aumentar a faixa de isenção do IR de R$ 3.036 para R$ 5.000. O projeto também estabelece que pessoas com renda superior a R$ 50.000 (R$ 600 mil por ano) terão um mínimo de imposto a ser pago. Esse mínimo iniciará em zero e subirá progressivamente a 10% para quem recebe R$ 100 mil mensais (R$ 1,2 milhão por ano) ou acima disso.

Everardo afirmou que “há uma probabilidade altíssima” de o aumento da isenção ser aprovado. Mas disse que não haverá compensação disso com maior pagamento de impostos por pessoas com renda mensal superior a R$ 50.000. O ex-secretário da Receita Federal disse que terão facilidade de evitar isso.

Isso apenas estimula o planejamento tributário. Os mais ricos têm uma enorme facilidade de mudar o domicílio fiscal”, disse.

Assista à entrevista (40min22s):

Everardo foi secretário da Receita Federal de 1995 a 2002, no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB).

Afirmou que o projeto do governo para elevar a faixa de isenção do IR foi “mal redigido”. Ele identificou 22 itens obscuros no texto divulgado pelo governo.

A seguir, trechos editados da entrevista:

Poder360 – Qual a sua avaliação sobre o projeto para elevar a isenção do Imposto de Renda para R$ 5 mil?

Everardo MacielFoi dito, como 1ª motivação, [que era] o cumprimento de uma promessa de campanha. Eu desconheço a existência de alguém que optou pelo atual presidente porque ele fez uma promessa para aumentar o limite de isenção para R$ 5.000. É o mesmo valor, também sem motivação, que foi peça de campanha do candidato opositor, o então presidente Jair Bolsonaro [PL]. Se os 2 diziam a mesma coisa, [isso] não pode ter sido um critério de desempate para escolher um ou outro. Qual é a motivação? É eleitoral. É uma pretensão de reverter os índices de popularidade [de Lula] e de aprovação do atual governo. Todas as outras são instrumentos utilizados para mistificar, para enganar. Vejamos: R$ 5.000 é muito ou é pouco? É quase duas vezes a renda domiciliar mensal do brasileiro, que é R$ 2.069.

Quando eu era secretário da Receita Federal, eu fiz uma avaliação do limite de isenção adotado no Brasil, cotejado com o PIB per capita. Apenas os países nórdicos, Suécia, Dinamarca, Noruega e Finlândia, tinham uma relação levemente superior à brasileira. São economias menores que a brasileira. Também países muito mais desenvolvidos, com a renda muito elevada. Todo o resto está abaixo do Brasil:  Estados Unidos, México, Argentina, Chile, Portugal, Espanha, Alemanha, Reino Unido, China, Índia, Coréia do Sul, Japão, Turquia. Portanto, muito mais gente paga Imposto de Renda nesses países. Pagar Imposto de Renda é um exercício de cidadania. Não se pode comemorar excluir do universo os pagantes. O que pode ter é uma escada de progressividade: quem ganha pouco pagar muito pouco. Os que ganham muito, pagarem desproporcionalmente mais. Isso é o que se chama progressividade, um princípio esculpido na Constituição brasileira como cláusula pétrea, portanto insuscetível de alteração por emenda constitucional. Mas nós temos aqui um discurso muito esquisito. Comemoramos o aumento dos beneficiários de Bolsa Família. Mas não era para emancipar? A pobreza cresce? Tudo aquilo no Brasil que representa uma benesse tem uma extrema facilidade de ser aprovado pelo Congresso Nacional.

Na sua avaliação, o aumento do limite de isenção do IR vai ser aprovado?

Há uma probabilidade altíssima de ser aprovado. Se a proposta fosse para R$ 6.000, seria a mesma coisa. Ou para R$ 7.000. Teria a mesma chance de aprovação, porque, no Congresso, não há um comprometimento claro, ostensivo, com a racionalidade e com o equilíbrio fiscal.

Na proposta do governo, há compensação por meio do aumento da taxação para pessoas com uma renda mais elevada. Isso vai funcionar?

Escolheram um patamar de R$ 50.000. Por quê? Porque é R$ 5.000 multiplicado por 10. Se alguém tiver alguma explicação melhor, que me dê. Não foi dado o porquê. É estritamente arbitrário. Por que R$ 50.000? Poderia ter sido R$ 40.000 ou R$ 60.000. Todo ato público, todo projeto de lei, tem que ter uma fundamentação. Tem que se dizer por que se escolheu aquilo. O projeto [do aumento da isenção] é de uma redação muito infeliz.

O senhor apontou 22 pontos obscuros no projeto. Pode falar sobre isso?

Há coisas como subtrair um valor em reais de um número absoluto. Isso é equivalente a perguntar qual a diferença entre 2 kg e 1 litro.  Foi um descuido. A norma tem que ser respeitada, tem que ter um caráter quase sagrado. Não pode ser claudicante nem vilipendiada. A Constituição diz que os brasileiros não podem alegar em proveito próprio o desconhecimento da lei. Ora, se a lei é obscura, como é que eu posso respeitá-la? [No projeto se menciona] o acompanhamento desse benefício. Qual o problema de ser tratado como benefício? Nenhum, desde que o demonstrativo de benefícios fiscais, que é obrigatoriamente um anexo da Proposta de Lei Orçamentária Anual, diga qual é. Mas não é dito. Alega-se que é [parte] da própria estrutura do imposto. É uma forma de fugir do problema. Mas se disse expressamente que é um benefício tributário que será acompanhado pela Secretaria de Política Econômica, que verificará se foram alcançados os objetivos e metas. Quais os objetivos e metas? Como é que se vai acompanhar objetivos e metas que não existem? Vamos trazer de volta aquela frase famosa de que “nós não sabemos qual é a meta, mas vamos dobrar a meta”. Está no mesmo patamar de inconsistência, no mesmo nível de obscuridade.

Do outro lado, trata-se do Imposto de Renda das Pessoas Físicas Mínimo. É um tributo novo? Parece [ser], talvez até por infelicidade redacional. Uma coisa é o mínimo do Imposto de Renda da Pessoa Física. Outra coisa é o Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo. Se está incorporado ao nome, é um novo imposto. Tem como base de cálculo outro imposto, o Imposto de Renda da Pessoa Física. Já se sabe que imposto não pode servir de cálculo para outro imposto. Imagino o grau de controvérsia [que isso provocará]. Introduz-se um conceito esquisitíssimo de alíquota efetiva. É usada, eu mesmo a utilizei, mas é um instrumento analítico, não um instrumento jurídico. A alíquota efetiva é sempre menor do que a alíquota nominal, por definição. Sobre a alíquota nominal, existem deduções, incentivos, progressividade. Tudo isso faz com que a alíquota efetiva se afaste da alíquota nominal. Quando eu tenho uma alíquota efetiva menor, não posso ficar inconformado com isso. Será sempre menor. Pode ser que seja menor por alguma razão que não a mais razoável possível. O que é que eu tenho que fazer? Combater a causa. Uma empresa decide entrar no programa de incentivo fiscal na Lei Rouanet. Vai reduzir a alíquota efetiva. Quando eu compenso prejuízos fiscais utilizando uma regra legal e absolutamente consistente, eu vou reduzir a alíquota efetiva. Se diz que no cálculo do Imposto de Renda da Pessoa Física Mínimo se vai tomar como base de cálculo os rendimentos isentos. Por via oblíqua, estou tributando o rendimento que era para ser isento. [Afirma-se] que vão estar na base de cálculo rendimentos tributados exclusivamente ou definitivamente. Se é exclusivamente ou definitivamente, não pode ser tributado outra vez. Compromete-se o conceito de rendimentos tributados exclusivamente na fonte.

Em relação a empresas que estão em regimes simplificados, como o Lucro Presumido e o Simples, se diz que para fazer essa apuração tem que tomar o lucro contábil, tem que verificar as folhas de salário. O que se pretendia que fosse uma tributação simples passa a ser uma tributação complexa. O discurso começa assim: o sistema tributário é caótico. Nós temos que simplificá-lo. Essa tentativa de simplificá-lo torna-o mais complexo. Isso tem um nome: dissonância cognitiva. A boa notícia é que é tratável

O que está proposto no projeto é implantar um mínimo de impostos a ser pago, uma tentativa de colocar um piso, mesmo que outras leis, outras regras, permitam que se vá abaixo disso. Não funciona fazer dessa maneira?

É exatamente o que eu estou dizendo: se quer aumentar a tributação, altere as regras em vez de introduzir essa.

Qual é o problema de ter ambas?

É um movimento contraditório: eu concedo um benefício, depois digo em outra lei que o benefício não vale. É a indisposição e a incapacidade de enfrentar diretamente um problema. Por que foi que foi estabelecida a isenção da tributação de dividendos? Porque se estabeleceu uma regra de apuração dessa tributação na pessoa jurídica em vez de ser no acionista. Pode-se tributar na pessoa jurídica, na pessoa física ou em ambas. É mera técnica de extração tributária. Não é um conceito de justiça ou injustiça. Optou-se por essa regra [na empresa] porque é muito mais eficiente do ponto de vista arrecadatório e cômoda para o contribuinte. Evita algumas doenças tributárias muito perigosas, como a distribuição disfarçada de lucros. Isso tinha relevância na fiscalização da Receita Federal até essa regra. Hoje praticamente desapareceu. Está aumentando a carga tributária para essas pessoas [que recebem dividendos]. No caso do residente no Brasil [pode-se], fazer um ajuste, portanto aumentando a complexidade. Está se [implantando] um tratamento não-isonômico entre o estrangeiro e o doméstico. Uma das raras vantagens, do ponto de vista tributário, para o investimento externo no Brasil, é precisamente a isenção de dividendos. Estão dizendo que essas questões [estão] em tratados de bitributação. Sim. Mas é preciso lembrar que não há tratado de bitributação com os Estados Unidos, com o Reino Unido nem com a Alemanha

Será possível ter a compensação do aumento da faixa de isenção?

Creio que não. Isso apenas estimula o planejamento tributário. Os mais ricos têm uma enorme facilidade de mudar o domicílio fiscal. Quando François Hollande [socialista], presidente da França, resolveu aumentar [impostos], fez apenas com que as grandes fortunas trocassem de domicílio. O caso clássico, muito comentado na imprensa, é o do [ator] Gérard Depardieu, que transferiu o domicílio fiscal para a Bélgica e, aproveitando a oportunidade, a nacionalidade para a Rússia. Mais recentemente, a mesma coisa se fez na Noruega. O que é que as grandes fortunas fizeram? Transferiram o domicílio para a Suíça. Para uma pessoa muito rica, um bilionário, isso é uma operação facílima, trivial. Isso não constitui nenhuma dificuldade. Não o alcança. Em 2º lugar, isso estimula o planejamento tributário abusivo. Quando eu fico vendo um grupo que sempre está [no Forum Econômico de] Davos, Bilionários pela Tributação, eu fico indignado com essa hipocrisia. Eles não estão interessados em nada disso. Eles estão querendo que aumente a tributação para deixar de pagarem imposto. Como? Quando você aumenta a tributação, quem tem muitos recursos instrumentais, operacionais, para trabalhar com tributação. Ele paga menos e aumenta dos outros. Um site investigativo chamado ProPublica conseguiu capturar dados do imposto de renda dos americanos. Dados do IRS, que é a Receita Federal norte-americana. [Analisou a situação das] 25 maiores fortunas. A alíquota nominal do imposto de renda das pessoas físicas nos Estados Unidos vai 39%. Qual é a alíquota efetiva dessas 25 maiores fortunas no período entre 2014 e 2018? É 3,4%. Não tem sonegação. É tudo dentro da lei. Isso é um uso do que se chama de “fiscal loophole”, brechas fiscais.

O senhor mencionou a alíquota marginal do imposto de renda da pessoa física nos Estados Unidos, que chega a 39%. No Brasil, chega a 27,5%. Seria o caso de elevar a alíquota máxima no Brasil? Teria efeito de arrecadação?

Não, nenhum. Existia uma alíquota de 35% no Brasil. Alcançava 11.000 pessoas e a arrecadação era mínima. Porque a renda média é baixa. A tributação brasileira cada vez torna-se pior. Era próxima de um tributo flat, [em que] a alíquota efetiva se aproxima muito da nominal. Todas as vezes que se inventam essas coisas, a alíquota efetiva vai se afastando.

O que pode resultar em queda da arrecadação?

Eu não sei, não tenho um acompanhamento direto, mas costumam ser os incentivos fiscais, com arranjos de planejamento muito sofisticado. Quando há um prejuízo, é compensável no exercício subsequente. E é claro que diminui a alíquota efetiva, por definição. No dia do planejamento tributário, eu me lembro que uma reportagem que eu vi no Financial Times. Falava de em um hotel dos ricos ingleses, o Savoy, que nos meados da 1ª década deste século foi adquirido por um consórcio de empresários da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes. Desde então dá prejuízo. Mas continua funcionando com a mesma qualidade. E qual é a causa do prejuízo apontado na reportagem? É que se contratava empréstimo de uma empresa A, com juros altos, que por sua vez contratava de uma empresa B, com juros altos, e depois de uma empresa D, com juros altos, e lá na frente tem uma empresa N, que é a que emprestava todas, que era o mesmo dono do Savoy. É um planejamento pela via da manipulação de taxa de juros. E isso o próprio Fisco Inglês não consegue enfrentar.

Qual a sua avaliação da reforma tributária aprovada pelo Congresso?

A reforma tributária do consumo? Eu acho uma péssima solução. Aumentamos a complexidade. Introduzimos princípios que não existiam. O sistema tributário nacional obedecerá aos princípios da justiça tributária, simplicidade, transparência, cooperação e defesa do meio ambiente. Ora, não há nenhuma dificuldade em dar uma enorme quantidade de definições para cada um desses princípios. Esses princípios nem sequer são consagrados na doutrina, no discurso, quanto mais na lei. E até por isso são princípios, não são regras. [Há] um espaço de contencioso interminável. Se cada um tem uma grande diversidade de considerações, a combinação dá um número infinito de interpretações. Não é, quero deixar bem claro, que eu não reconheça a existência de problemas no sistema tributário anterior. O que eu estou mencionando é que se escolheu a opção mais custosa, mais complexa, possivelmente a mais ineficiente. Mostra um outro problema. Essa reforma, todos viram, foi aprovada sem nem sequer se conhecer o texto. Foi distribuído depois.

No dia subsequente ao da liberação, os valores até parece que estão subestimados, de R$ 8,5 bilhões em emendas parlamentares, que, como todos sabem, têm um enorme poder de convencimento. Para fazer a cooptação dos Estados, foram criados vários fundos cujo montante, estimado até os meados da década de 2040, vão demandar recursos que chegam a R$ 1,1 trilhão. Como só tem o Imposto de Renda para financiar isso, significa que custará ao contribuinte mais de R$ 2 trilhões porque quase a metade da arrecadação do imposto é dividida com os Estados e municípios. A propósito, a proposta de [aumento da faixa de isenção] do Imposto de Renda afeta dramaticamente os Estados, sobretudo os municípios, porque a tributação na fonte dos servidores públicos dos Estados e municípios constitui receita dos Estados e dos municípios. Dando a isenção, essa arrecadação vai desaparecer.. Voltando para os fundos, neste ano teria que ser aportado a um Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional R$ 8 bilhões. Não consta do Orçamento porque se quer fazer isso como se fosse uma despesa financeira. É contabilidade criativa. Quando eu digo que não é despesa primária, quando eu digo que é despesa financeira, eu estou transferindo o ônus, o pagamento disso, para gerações futuras pela emissão de dívida.

Há um acúmulo de conflitos. Tem um fundo para compensar incentivos. O que são incentivos? Diz que esses incentivos serão apurados pela Receita Federal. [É uma] confusão para resolver problemas que seriam resolvidos por uma via muito mais econômica e efetivs, a da lei complementar. Dizer “temos problemas de guerra fiscal”. Uma competição fiscal que é amparada pela lei não é guerra fiscal. A guerra fiscal é benefício fiscal contra a lei. A partir da Constituição de 1988 apareceu a guerra fiscal. Por quê? Por duas razões. Uma é que extinguiram, na reforma administrativa do governo Collor, a coordenação do ICMS no governo federal. Outra é que se disse que os benefícios seriam revogados ou concedidos nos termos de lei complementar. Enquanto não [foi feita nova] lei complementar, prevaleceram os critérios da Lei Complementar 24 de 1975. Era letra morta, porque sem sanção. Todos passaram a praticar guerra fiscal, o incentivo fiscal contra a lei. Nós temos essas questões [atualmente] num quadro institucional muito instável, [de] conflitos entre os Poderes. Não há estabilidade normativa nem institucional. Precisa refundar a República. Do jeito que está, não vai.

Na sua avaliação, daqui a 5 anos ou 10 anos, o sistema tributário do Brasil vai estar melhor ou pior?

Eu não me arrisco a fazer previsões. O mundo está muito instável. Se nós falássemos há 5 anos, 10 anos, de que os sistemas tributários seriam afetados por uma política agressiva de tarifas, de imposto de importação, alguém diria que nós estávamos falando de uma ficção. Há um grande desarranjo no mundo.

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