O presidente da Argentina, Javier Milei (La Libertad Avanza, direita), completa 1 ano no governo nesta 3ª feira (10.dez.2024). O mandatário, antes com pouca voz política, surgiu como um outsider na campanha de 2023 e venceu o então presidente peronista Alberto Fernández.
Uma das propostas mais enfatizadas durante sua campanha e no começo do governo foi a situação econômica do país. Ao assumir a Casa Rosada, a Argentina tinha 12,8% de inflação mensal em novembro. Agora, 1 ano depois do início de seu mandato, o país registrou 2,7% em outubro, último dado disponível pelo Indec (Instituto Nacional de Estatística e Censos).
No entanto, o professor de relações internacionais da UFF (Universidade Federal Fluminense) Marcio Malta avalia que o feito não é de se comemorar. “O 1º ano de Javier Milei é o que poderia se esperar de pior porque, afinal de contas, a questão social é deprimente. […] Acho que as pessoas não estão podendo consumir porque não conseguem satisfazer o mínimo de suas necessidades”, diz em entrevista ao Poder360.
“Controlar a inflação com intervenção do governo no sentido de segurar dólar, por exemplo, é queimar divisas e satisfazer setores financeiros mais abastados”, declara.
O Indec informou em 26 de setembro que 15,7 milhões de pessoas estão em situação de pobreza. Se estendido às áreas rurais, o número chega a 24,9 milhões de argentinos, resultando em 52,9% da população total do país nessa situação.
“Comparativamente ao 2º semestre de 2023, a incidência da pobreza registrou um aumento para famílias e indivíduos, de 10,7 e 11,2 pontos percentuais, respectivamente. No caso de indigência, apresentou aumento de 4,9% nos domicílios e 6,2% nas pessoas”, diz a pesquisa sobre a comparação com dados do 1º semestre de 2023. Eis a íntegra (PDF – 888 kB, em espanhol).
Na prática, o Indec indica que 3,4 milhões de argentinos passaram a figurar em situação de pobreza nos 6 meses iniciais da gestão de Javier Milei. Ao todo, 5,4 milhões de argentinos estão em pobreza extrema (18,1% da população).
Uma pesquisa realizada pela Poliarquía de 4 a 14 de novembro mostra que 56% da população aprova o governo do presidente argentino e se dizem otimistas quanto às perspectivas futuras do país. Outros 43% afirmam desaprovar a gestão de Milei.
De acordo com o jornal La Nación, o libertário conseguiu manter seu nível de aprovação estável ao longo deste 1º ano de governo, ao contrário de seus antecessores Alberto Fernández, Mauricio Macri e Cristina Kirchner. Além disso, foi o melhor mês de novembro de um 1º ano de governo para um presidente argentino desde Néstor Kirchner, que governou o país de 2003 a 2007.
O início do governo foi marcado pela Lei Ômnibus, superpacote de medidas proposto por Milei ao Congresso logo no seu 1º mês na Casa Rosada. O texto buscava estabelecer privatizações de empresas estatais, desregulamentação de alguns setores da economia, reforma da previdência e outros pontos.
O projeto passou por diversas tramitações na Câmara e no Senado em que registraram tanto vitórias quanto derrotas para o governo.
No final das contas, muitas coisas ficaram “pelo meio do caminho”, segundo avalia Fábio Andrade, cientista político e professor do curso de relações internacionais da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing), em entrevista ao Poder360.
“Ter ficado pelo meio do caminho não é ruim porque aquele projeto, de certa forma, previa uma reconstrução da Argentina em um nível cujos efeitos colaterais eram difíceis de avaliar” diz.
“O ponto negativo é que basicamente, em virtude de vários desses pontos terem ficado pelo meio do caminho, muitas promessas de campanha não foram entregues”, declara. Entre as propostas não cumpridas, o professor destaca as que tratavam de “implodir o Estado”, como a privatização de empresas estatais.
Em relação à política externa, Marcio Malta afirma que o presidente seguiu o comportamento que prometeu durante a campanha, o que ele classifica como “tradição do comportamento liberal”.
Exemplo disso foi a atitude do argentino durante a Cúpula do G20 no Rio, em relação à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza. O líder, inicialmente contrário à proposta apresentada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), assinou o texto de última hora, já durante a realização do evento.
MILEI & VILLARRUEL
Nos meses mais recentes do governo, o presidente expôs uma rixa com sua vice-presidente, Victoria Villarruel, que também preside o Senado. Em uma entrevista ao La Nación, Milei declarou que Villarruel não tem influência em sua gestão e sequer participa das reuniões ministeriais. Para ele, a vice está mais próxima da “casta” do que de seu governo.
A “casta” é uma referência ao grupo burocrata argentino que, segundo ele, atrapalha o desenvolvimento do país. A categoria foi criticada durante sua campanha eleitoral de 2023 e atualmente é um dos “inimigos” que Milei diz combater.
Em resposta às declarações, Victoria Villarruel travou a pauta do Senado. Ela conquistou a reputação de ser uma política equilibrada à frente da Casa Alta, capaz de angariar apoios cruciais de partidos de esquerda no Legislativo para as propostas de Milei. A Argentina terá eleições legislativas em 2025, o que pode alterar a conjuntura do Congresso tanto a favor quanto contra o presidente.
Com a tensão na chapa presidencial, alguns especialistas avaliam que a irmã do presidente, Karina Milei, assume como braço-direito informal do autodeclarado libertário. O presidente alterou um decreto em seu 1º dia de governo para nomeá-la secretária-geral da Presidência.
“A Karina compõe o núcleo do governo direto do Executivo, responde diretamente a Milei, enquanto a vice entra em choque [com o presidente] justamente porque ela está ligada a um outro poder”, afirma.
O professor destaca, ainda, que esta característica de atrito entre poderes não é exclusivo da atual gestão argentina. Segundo Andrade, é um comportamento que pode ser notado em outros governos que seguem políticas de extrema-direita, como no de Milei.
“O governo Milei foi eleito com todas as características de governos de extrema-direita, que basicamente têm um viés antissistêmico muito forte e, em certa medida, anti-institucional. […] O lado forte é basicamente a promessa anti divisão de poderes, então esses caras vão operar em um grau de tensão com as outras instituições de controle muito grande”, declara.
MILEI & LULA
Durante sua campanha para a Casa Rosada, Milei acusou, sem provas, Lula de ser “ladrão”, além de outras críticas e declarações contra o petista. Agora, chefes de Estado contemporâneos, as interações se limitam a cumprimentos formais em eventos internacionais, segundo avalia Malta.
Além disso, o professor destaca que o presidente argentino não é um apoiador tão fervoroso quanto Lula no que diz respeito ao fortalecimento da integração regional entre países sul-americanos e menciona a atitude de Milei sobre o acordo Mercosul-UE: “A Argentina fazer o papelão de dizer que não faz diferença nenhuma, mas que não será contra, demostra o quão pouco [Milei] está preocupado com o avanço dessas conversas multilaterais”.
A União Europeia e o Mercosul finalizaram as negociações para um acordo entre os blocos em 6 de dezembro, durante a cúpula da organização sul-americana no Uruguai.
Já Andrade classifica a relação como “curiosa”. Segundo o professor da ESPM, apesar de haver embates públicos entre os mandatários, os países ainda mantêm uma conexão importante devido à economia. O Brasil e a Argentina estão entre os principais países que exportam e importam produtos um ao outro. “Não tem como abrir mão dessas relações, então a economia vai se sobrepor a esses interesses políticos”, afirma Fábio Andrade.
Em contrapartida, Milei tem uma relação bastante próxima do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), com quem compartilha ideias de governo semelhantes. Em 4 de dezembro, durante a CPAC (Conferência de Ação Política Conservadora), o ex-presidente agradeceu ao libertário pelo “acolhimento” dado a brasileiros indiciados pelos atos do 8 de Janeiro que fugiram para o país vizinho. Cerca de 54 pessoas continuam foragidas na Argentina.
Durante seu discurso no evento, Bolsonaro disse que “esse ato tão generoso” do argentino não será esquecido pelos “brasileiros de bem”. A CPAC é o principal fórum de políticos e ativistas conservadores do mundo e foi realizado em Buenos Aires em 2024.
MILEI & TRUMP
Ao contrário da relação com o líder brasileiro, Milei tem uma conexão amistosa e próxima com o presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump (republicano).
Em um telefonema entre os 2 depois do resultado da eleição norte-americana, Trump afirmou que Milei é seu “presidente favorito”. A ligação se deu dias antes de o republicano receber o libertário em Mar-a-Lago, seu resort na Flórida.
O presidente argentino, que busca manter uma relação alinhada ao norte-americano, diz estar aberto a ajudar o próximo presidente dos EUA a atingir o objetivo de “tornar os Estados Unidos grande novamente” –lema de campanha presidencial de Trump.
Fábio Andrade classifica a relação entre Milei e Trump como um “jogo diplomático”. Para ele, “parece que os Estados Unidos não estarão tão preocupados com o que a Argentina é em si, mas com o símbolo que a Argentina pode ser. Essa dobradinha Milei-Trump pode criar dificuldades para Lula”, afirma.