A PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 3 de 2022, em tramitação no Senado, ganhou os holofotes nos últimos dias com a pecha de ser uma proposta que permitiria a privatização de praias. No entanto, há uma leitura equivocada do texto, que não cita efetivamente as praias e na realidade trata só dos chamados terrenos de marinha.
Em nenhum trecho a PEC trata das áreas de praia –as faixas de areia como conhecemos–, que são bens públicos de uso comum, com acesso livre ao mar garantido. Isso não mudaria na lei. Os terrenos de marinha de propriedade da União abordados na proposta ficam mais de 30 metros distantes da faixa de areia.
Mas o que é um terreno de marinha? Apesar do nome, as terras de marinha não pertencem à Marinha, que é parte das Forças Armadas. São terrenos de propriedade da União, localizados entre a linha imaginária da média das marés, chamada de LPM (Linha de Preamar Média). Essa linha foi estabelecida pela Carta Náutica de 1831 e da média das enchentes comuns daquela época.
Trata-se de um resquício do período imperial, que criou uma área de proteção à soberania nacional próxima à costa. Os terrenos de marinha compreendem uma faixa de 33 metros para dentro do continente a partir da LPM. E essa linha fica 30 metros distante das praias. Além do mar, a faixa passou a ser aplicada posteriormente às margens de rios e lagos.
Atualmente, quem ocupa áreas nessa faixa, sejam os Estados, municípios ou agentes privados, compartilham a propriedade desses terrenos com a União, que detém 17% do valor da terra. Por isso, os moradores dessas áreas pagam duas taxas para o governo federal, chamadas de foro e laudêmio –esta última é paga sempre que um imóvel na área é vendido, numa taxa de 5% do valor da terra.
A PEC, proposta em 2011 pelo ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA) e aprovada em 2022 pela Câmara com o apoio dos Estados e municípios litorâneos, nada mais trata do que acabar com as taxas existentes. Em vez de cobrar taxas referentes aos seus 17% de participação nos terrenos, o governo federal poderá vender sua parcela para quem já ocupa os tais terrenos de marinha.
O texto diz que as áreas definidas como terrenos de marinha e seus acrescidos (terras que pertencem à União e eram cobertas pelo mar e foram aterradas depois de criação da linha preamar) passam a ter sua propriedade assim estabelecida:
- continuam sob o domínio da União as áreas não ocupadas e aquelas ocupadas pelo serviço público federal, inclusive aquelas destinadas às concessionárias de serviços públicos e a unidades ambientais federais;
- passam ao domínio pleno dos respectivos Estados e Municípios as áreas ocupadas por serviço público estadual e municipal;
- passam ao domínio pleno dos foreiros e dos ocupantes regularmente inscritos na SPU (Secretaria de Patrimônio da União);
- passam ao domínio dos ocupantes não inscritos na SPU desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos 5 anos antes da data de promulgação da PEC;
- passam aos cessionários as áreas que lhes foram cedidas pela União.
O texto mantém a faixa de segurança de 30 metros, a partir do fim da faixa de areia. É só depois dessa faixa que começam os terrenos de marinha ou os acrescidos. A União seguirá sendo a detentora da faixa de segurança, mas poderá vender sua parte dos terrenos depois dela.
Na prática, se retira da União a propriedade exclusiva dos terrenos de marinha, permitindo a transferência gratuita ou a venda da parcela da União nas áreas já ocupadas para Estados, municípios e proprietários privados. O texto não trata do formato que seria feita a venda, mas ela só seria possível para terrenos de marinha já ocupados e só aos seus ocupantes.
A transferência do terreno será gratuita no caso das áreas ocupadas por habitação de interesse social ou requeridas pelos municípios para expansão do perímetro urbano. Nos demais casos, a transferência será onerosa. Segundo o texto, será necessária uma nova lei de regulamentação da PEC em até 2 anos para ditar a forma de venda.
Como mostrou o Poder360, o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) estimou em novembro de 2019 que a venda de terrenos de marinha poderia resultar em ganho de R$ 140 bilhões à União. Com a variação do IPCA (Índice de Preços ao Consumidor Amplo) até abril de 2024 (dado mais recente disponível), o valor chegaria a R$ 184 bilhões.
Com a transferência das terras, a PEC estabelece que “fica vedada a cobrança de foro e de taxa de ocupação das áreas, bem como de laudêmio sobre as transferências de domínio”. Em 2019, o governo federal arrecadou R$ 1 bilhão com ambas as taxas. O valor anual pouco mudou em 2023, quando a receita com os terrenos foi de R$ 1,1 bilhão.
Segundo o Ministério da Gestão e Inovação, há 564 mil imóveis registrados como terrenos de marinha. Do total arrecadado, 20% é repassado aos municípios. A receita se refere só aos imóveis registrados na SPU. Segundo cálculos do governo, o valor poderia ser 5 vezes maior, com um total de quase 3 milhões de construções nas áreas próximas ao mar, mas que não foram registradas.
POLÊMICA É NOVIDADE
O governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT) demonstrou não ter entendido direito do que trata o texto. O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, disse que o governo é contra a PEC e “qualquer programa de privatização das praias públicas, que cerceiam o povo brasileiro de poder frequentar essas praias. Do jeito que está a proposta, o governo é contrário a ela”.
No entanto, 5 ministros do governo Lula votaram, quando deputados, a favor da PEC. Os ministros André Fufuca (Esportes), André de Paula (Pesca), Celso Sabino (Turismo), Juscelino Filho (Comunicações) e Silvio Costa Filho (Portos e Aeroportos) foram a favor do texto que foi aprovado por 389 votos favoráveis e 91 contrários na Câmara dos Deputados em 2022.
Aliás, quando o projeto foi aprovado na Câmara, não se falava em privatização de praias. Os Estados e municípios defenderam a proposta de transferência plena dos terrenos de marinha para:
- acabar com as taxas pagas à União pelos proprietários, sejam públicos ou privados;
- estimular o desenvolvimento e regularização fundiária dessas áreas, inclusive atraindo investimentos;
- facilitar a gestão de áreas próximas às praias sem que seja necessário aval da União.
Especialistas também defendem a proposta para corrigir a distorção que se formou ao longo das décadas, uma vez que as linhas imaginárias de 1831 não fazem mais sentido. Em alguns lugares o mar subiu. Em outros, foram feitos aterros que ampliaram em muitos metros a faixa de continente sobre o mar.
Para se ter ideia, com as mudanças temporais que mudaram a localização dos terrenos de marinha, prefeituras como a de Vitória (ES) e de Aracaju (SE) precisaram pedir uma autorização especial e temporária da União para licitar quiosques que ficam nos calçadões das praias. Eles estão em terreno de marinha, e com a PEC poderiam ser revertidos definitivamente aos municípios.
Outro caso emblemático é o do Copacabana Palace, hotel localizado no Rio que é considerado o mais famoso do país. A edificação é classificada como terreno de marinha, uma vez que a faixa de areia ainda não tinha sido ampliada na época da definição da linha imaginária LPM.
NEYMAR x PIOVANI
O tema voltou a ser debatido depois de ser pautado na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) do Senado em 27 de maio. O texto é de relatoria do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).
Rapidamente a PEC ganhou repercussão nas redes sociais depois de ser palco de discussão entre a atriz Luana Piovani e o jogador de futebol Neymar Jr.
Em 18 de maio, Neymar anunciou parceria com a Due Incorporadora na construção do chamado “Caribe Brasileiro”. Serão 28 empreendimentos nos litorais de Pernambuco e Alagoas. Internautas resgataram o vídeo do atleta e disseram que ele estaria apoiando o projeto por interesse numa possível privatização de praia. O jogador e a empresa negam.
Depois disso, em 30 de maio, Luana Piovani se manifestou nos stories do seu perfil no Instagram pedindo aos seus seguidores para votarem contra a PEC. Também criticou Neymar, o chamando de “mau-caráter” e “péssimo cidadão”. O jogador do Al-Hilal respondeu chamando Piovani de “louca”, “mal-amada falastrona” e disse que “tem que enfiar um sapato” na boca da atriz, que, segundo ele, “só fala merda”.
Com a relatoria do filho de Bolsonaro, congressistas governistas rapidamente correram para criticar o projeto, endossando que o texto permitiria uma privatização das praias. O senador Flávio Bolsonaro tem negado que a PEC aborde qualquer mudança nas praias.