A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) divulgou um livro que detalha a atuação de seus agentes durante a pandemia de Covid-19. A obra expõe a pressão exercida pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) para minimizar a gravidade da doença e a ausência de respostas eficazes diante das ações necessárias para contê-la.
O documento, lançado nesta sexta-feira (25) na Escola de Inteligência (Esint), reúne depoimentos de agentes e afirma que a pandemia exigiu “condutas muito corajosas”. O texto destaca ainda que a agência buscou “assessorar o processo decisório” e proteger vidas humanas.
Os depoimentos — com os nomes reais dos agentes ocultados — detalham a produção de relatórios sobre a ineficácia da hidroxicloroquina, a possibilidade de falta equipamentos, a dificuldade de acesso ao governo federal e a pressão para produzir documentos favoráveis a remédios considerados ineficazes.
Os agentes afirmam que acertaram em diversas análises, mas não recebiam retorno sobre o material produzido.
“Então, acho que antecipamos e acertamos muita coisa. Tanto em relação a ameaças, quanto em relação a oportunidades para o País, em meio à crise. Ainda assim, durante o processo, não tínhamos muitos feedbacks”, disse um agente identificado no documento como Fernando.
Mais de um agente também relatou ter sido desencorajado a produzir informações sobre o combate à doença, sob a justificativa de que elas não seriam utilizadas.
Confira, a seguir, trechos de depoimentos do livro.
Documentos não aproveitados
Um agente, identificado como Guilherme, afirma que foi o único representante da agência na China durante a pandemia. Ele relata que o governo solicitou que deixasse de priorizar as informações sobre a Covid.
“No fim de maio [de 2020], recebi mensagens de Brasília recomendando que eu deixasse de priorizar o acompanhamento da pandemia. Eu parei por um certo tempo, no final de maio, mas, em meados de junho, fiz mais alguns documentos que eu julgava importantes, porque tinha havido um pequeno surto de Covid-19 em Pequim. […] Recebi novos contatos que diziam que talvez não valesse a pena eu produzir mais esses documentos porque eles não seriam devidamente aproveitados”.
Já Flavio — nome fictício — relata que estava na Itália quando a pandemia foi decretada. O país foi um dos primeiros epicentros da doença. Ele descreveu um “contexto ideológico hostil” dentro do governo.
“Mas era fato que havia um contexto ideológico que era hostil ao enfrentamento da doença. Havia um sentimento dentro de alguns setores do governo, que inclusive espraiaram por algumas embaixadas, de que a situação estava sendo superestimada: aquela doença, os seus efeitos, os impactos econômicos, ou a necessidade de res- posta na dimensão que estava sendo adotada por muitos países”.

Pressões e a hidroxicloroquina
O mesmo agente que estava na Itália relata que foi pressionado para produzir um documento a favor do uso da hidroxicloroquina.
“Eu fui instado a produzir um documento que pontuasse aspectos positivos da hidroxicloroquina na terapia anti-covid-19. Retruquei imediatamente ao meu interlocutor que aquilo não era propriamente algo que eu devesse fazer. Eu entendia a preocupação da Agência em alimentar o processo decisório com as informações relevantes, e que em algum momento o órgão – ainda que parcialmente – havia se tornado refém de um processo político de captura ideológica que veio a se mostrar extremamente nefasto para o Brasil ao longo dos meses que se seguiriam”
Outra pressão relata pela agente Camila foi para reduzir observações que pudessem ser interpretadas como críticas à condução do combate à doença pelo governo Bolsonaro.
“A gente sofreu muita pressão para diminuir, digamos assim, algumas observações que poderiam ser lidas como críticas ao governo. […]. O que eu sempre pontuei é que não eram críticas ao governo. Eram críticas às políticas públicas que estavam sendo tomadas”.
Mudança de ministério e falta de informação
Fernando, também nome fictício, informa no depoimento que houve uma “ruptura” com a saída de Luiz Henrique Mandetta, do Ministério da Saúde. De acordo com o agente, a Abin perdeu acesso aos dados para formulação das análises.
“Um ponto de ruptura no nosso trabalho foi quando houve a troca do ministro da Saúde Mandetta. Até ali, a gente tinha abertura, acesso aos dados. Depois, houve uma reformulação no ministério e a gente perdeu o acesso que tinha antes. […] E foi bem no auge da crise, então fez falta não estar lá presente nas reuniões. Também foi terrível quando deixaram de divulgar os dados oficiais sobre a contaminação”.
Vacinação
Um dos relatos, da agente Tatiana, remonta a desconfiança de que o então diretor-geral da agência Alexandre Ramagem não repassava informações sobre vacinação ao Palácio do Planalto.
“Falamos sobre a importância do papel do Governo Federal para que, quando a vacina chegasse, fosse aceita pela população. […] era fundamental o papel do governo orientando a população. […] a equipe começou a observar as posições do governo muito contrárias ao que a gente vinha acompanhando em leituras científicas, passamos a questionar se o que a gente estava fazendo era útil para assessorar. Muitos se perguntavam se a Direção-Geral estava encaminhando esses documentos para o governo”.
A CNN procurou a assessoria do ex-presidente Jair Bolsonaro para comentar o lançamento do livro e as críticas que a obra traz ao enfrentamento contra a Covid-19 durante seu governo. Porém, ainda não recebeu retorno.
Este conteúdo foi originalmente publicado em Abin revela em livro pressão do governo Bolsonaro para minimizar Covid no site CNN Brasil.