A CCPJ (Comissão da Carteira Profissional de Jornalista), órgão oficial de Portugal do ramo do jornalismo, enviou uma correspondência para o Poder360 afirmando que só pode atuar nessa profissão no país quem recebe uma carteira dessa entidade. O organismo oficial português não explica, entretanto, como devem ser tratadas pessoas que atuam na internet, em canais pessoais e no YouTube, fazendo entrevistas e divulgando informações.
Para tirar a carteira de jornalista por meio da CCPJ, o profissional tem de passar por um processo de preenchimento de documentos e pagamento de taxas. Há etapas para obter o registro definitivo. A 1ª carteira será de estagiário, terá validade de 1 ano (para quem é formado em comunicação) ou 18 meses (para os que não fizeram comunicação) e custará de 14,10 euros a 21,15 euros (dependendo da validade).
Também é obrigatório que o profissional com interesse em ter a carteira de jornalista comprove algum vínculo empregatício com uma empresa de comunicação que tenha recebido a chancela cartorial de uma outra entidade legal em Portugal, a ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social). Se for correspondente estrangeiro, o jornalista deve esperar que a própria CCPJ defina se o veículo que representa merece ou não ter o credenciamento.
Depois do período de estágio, a empresa contratante emite um relatório. Munido do documento, de uma carta dessa empresa e após o preenchimento de mais formulários, o profissional pode finalmente pedir a carteira de jornalista definitiva. O documento tem validade de 2 anos e custa 70,50 euros.
A correspondência da CCPJ ao Poder360 foi motivada por textos que este jornal digital publicou sobre o português Sérgio Tavares, que atua em comunicação social, apresenta-se como jornalista e veio duas vezes ao Brasil em 2024 para acompanhar atos a favor do ex-presidente Jair Bolsonaro. A CCPJ informou que em seu banco de dados não consta registro de Tavares como jornalista.
“Este organismo [CCPJ] independente de direito público nunca emitiu nenhum título de acreditação profissional a Sérgio Tavares”, disse a comissão depois da repercussão do caso em uma nota oficial (118 kB – PDF) em 26 de fevereiro de 2024. O Poder360 publicou a nota quando foi emitida.
INTEGRA DA CARTA DA CCPJ
De maneira simplificada, a CCPJ explica em sua correspondência que detém o monopólio do uso da expressão “jornalista” em Portugal. É essa entidade que tem o poder de dizer que é e quem não é jornalista no país. Em suma, alguém pode atuar como jornalista, seguir rotina de jornalista, mas se a CCPJ não quiser, essa pessoa não será jornalista.
A seguir, leia a íntegra da carta da CCPJ:
“Exmos. Senhores Diretores da publicação Poder360
“Assunto: Direito de resposta e de retificação ao abrigo da Lei no 13.188, de 11 de novembro de 2015.
“CCPJ – COMISSÃO DA CARTEIRA PROFISSIONAL DO JORNALISTA, organismo independente de direito público, com sede na Rua Artilharia 1, 107 1099-052 Lisboa, Portugal, representado pela sua Presidente MARIA LICÍNIA VIEIRA GIRÃO (doc. I), nos termos da Lei nº 13.188, de 11 de novembro de 2015 (normativo legal brasileiro) e da Constituição da República Federativa do Brasil (Título II, Capítulo I, artigo 5.0 V), vem por este meio, na qualidade de entidade visada, exercer o direito de resposta e retificação em relação ao conteúdo publicado na edição online da publicação dirigira [sic] por V. Exa., no dia 20 de abril de 2024, com o título: ‘Jornalista português pró-Bolsonaro anuncia nova viagem ao Brasil – Sérgio Tavares participará de ato convocado pelo ex-presidente no domingo (21.abr), em Copacabana, no Rio’, disponível em: https://www.poder360.com.br/poder-gente /jornalista-portugues-pro-bolsonaro-anuncia-nova-viagem-ao-brasil/, o que faz nos termos seguintes:
“Direito de resposta ao artigo com o título: ‘Jornalista português pró-Bolsonaro anuncia nova viagem ao Brasil – Sérgio Tavares participará de ato convocado pelo ex-presidente no domingo (21.abr), em Copacabana, no Rio’
“Refere o artigo que: ‘Em Portugal, a CCPJ (Comissão da Carteira Profissional de Jornalista) diz que em seu banco de dados não consta registro de Tavares como jornalista. A CCPJ é uma corporação à qual pode ou não aderir quem trabalha como jornalista e o registro nessa entidade não é exigido legalmente para exercer atividades correlatas à profissão. Algumas entidades privadas ou públicas podem exigir o tal registro em Portugal, mas quem não o tem é livre para atuar em um jornal digital próprio ou canal de entrevistas no YouTube, como faz Tavares’.
“Cumpre referir que são totalmente falsas as informações contidas na afirmação de que ‘A CCPJ é uma corporação à qual pode ou não aderir quem trabalha como jornalista e o registro nessa entidade não é exigido legalmente para exercer atividades correlatas à profissão’. Assim como que: ‘quem não o tem é livre para atuar em um jornal digital próprio’. Em Portugal a profissão de jornalista é constitucionalmente protegida e regulada. A CCPJ não é uma ‘corporação’, é um organismo independente de direito público que detém a incumbência de assegurar o funcionamento do sistema de acreditação profissional dos jornalistas, equiparados a jornalistas, correspondentes e colaboradores da área informativa, como dispõe o artigo 3º do Regime de Organização e Funcionamento da Comissão da Carteira Profissional de Jornalista e da Acreditação Profissional do Jornalista (Decreto-Lei nº 70/2008 de 15 de abril). E o registo de uma qualquer publicação (digital ou não) é também obrigatório junto da Entidade Reguladora para a Comunicação Social.
“Para exercer a atividade jornalística em Portugal a lei exige uma acreditação profissional emitida pela Comissão da Carteira Profissional de Jornalista. E quem não está acreditado para tal, não é jornalista, não pode exercer nem se identificar como tal, dado que entre outros normativos legais, viola o disposto no artigo 358º do Código Penal.
“Além de ser ainda grave, preocupante, falsa, difamatória e que afeta diretamente o bom nome, boa fama e reputação da CCPJ, pela informação enganosa que transmite aos leitores, inclusive eventuais jornalistas brasileiros que possam ter a intenção de vir a exercer a atividade em Portugal, a afirmação de que: ‘Apesar da pretensão de querer outorgar ou não o título de jornalista a alguém no país, a CCPJ não tem esse poder’.
“Não só a CCPJ tem o poder, por exigência legal –em cumprimento do Decreto-Lei nº 70/2008 de 15 de abril–, como tem a obrigação e o dever de o fazer enquanto entidade (co)reguladora da atividade jornalística em Portugal em observância ao estatuído na Lei nº 1/99 de 13 de janeiro (Estatuto do Jornalista).
“Assim como é, também, completamente falsa a afirmação de que: ‘Para exercer a profissão de jornalista em Portugal e também no Brasil ou na maioria dos países ocidentais não há lei que obrigue ter diploma nem licença para atuar em veículos de comunicação’.
“Cumpre ainda esclarecer que se a pessoa que vai de Portugal para exercer a atividade jornalística pontual para órgão de comunicação social registado em território português, tem de, obrigatoriamente, ser titular da Carteira Profissional de Jornalista emitida pela CCPJ.
“E sim, é um facto que Sérgio Tavares não é nem nunca foi jornalista em Portugal, apresentando-se ilegítima e ilegalmente como tal”.
Licínia Girão
(Presidente da CCPJ)
Nota da Redação: O Poder360 estranhou que a CCPJ não tenha explicado o que pode acontecer com algum cidadão que em Portugal decida criar um endereço na internet para relatar fatos ou começar a fazer entrevistas em plataformas de vídeos, como o YouTube.
Se o cidadão do exemplo acima fizer esse tipo de trabalho e não se apresentar como jornalista –mas como padeiro, pedreiro, engenheiro ou simplesmente como curioso– haverá algum problema legal? Teria de pedir uma autorização para a CCPJ? Possivelmente, não. É a isso que aludiu o texto do Poder360 agora contestado e que levou a presidente da CCPJ a investir tempo e energia na redação de uma caudalosa missiva.
No Brasil, a ditadura militar (1964-1985) baixou o decreto-lei 972, em 1969, tornando obrigatório o diploma de curso superior em jornalismo e o registro dos profissionais no Ministério do Trabalho para o exercício desse ofício. Em 2009, já durante a democracia plena, o Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiu que o decreto da ditadura sobre jornalismo era inconstitucional. O Brasil se juntou a muitos outros países desenvolvidos nos quais não há “gatekeepers” vigiando, fiscalizando e dizendo quem pode ou não ser jornalista. A liberdade de imprensa é total. Em Portugal, como se observa, o monopólio do uso da expressão “jornalista” está concedido legalmente à CCPJ. O Poder360 deseja sorte a todos os portugueses que desejam ser jornalistas, mas que precisam se submeter a esse cartório.
O Poder360 sempre ignorou no Brasil essa regra baixada manu militari, mesmo antes de o STF ter julgado o decreto da ditadura inconstitucional. Este jornal digital nunca exigiu diploma para quem desejasse trabalhar como jornalista e mostrava competência para tal. O Poder360 não é delegacia de polícia. Nunca aceitou pedir documentos como desejavam impor os esbirros da ditatura.
Entende-se a tradição cartorial ibérica representada pela exuberância de regras e leis portuguesas para o exercício da profissão de jornalista. Ainda assim, não parece apropriado que uma corporação como a CCPJ queira que no Brasil se adote a terminologia da burocracia lusitana, que só permite chamar de jornalista quem tem “carteirinha” de repórter.
Note-se que no caso em tela –envolvendo o português Sérgio Tavares– sempre houve o cuidado do Poder360 em definir o profissional retratado como jornalista porque essa era a natureza de sua atividade. Só que todas as reportagens também eram cautelosas e descreviam sem subterfúgios as preferências político-ideológicas de Tavares, pois essa informação tinha relevância jornalística e interesse público, o binômio que serve de guia para o Poder360.
O Poder360 tem um Código de Conduta e Princípios Editorais nos quais se compromete com a busca da “neutralidade na apuração dos fatos”. Isso inclui também respeitar todos os veículos de comunicação e jornalistas que atuam de maneira diversa deste jornal digital. Aqui, respeitam-se as diferenças.
O Poder360 não o faz, mas entende ser legítimo que um veículo jornalístico decida declarar apoio a políticos, a partidos políticos ou que se associe a determinadas causas ou ideologias. É tradição nos Estados Unidos periódicos tradicionais declararem apoio a candidatos republicanos ou democratas nas eleições, mas nem por isso deixam de perder sua respeitabilidade –e não dependem de autorização de órgãos estatais para funcionar nem seus profissionais precisam de obter permissão da guilda dos jornalistas.
Por fim, o Poder360 segue na crença de que cidadãos em Portugal devem ser livres para atuar descrevendo fatos (na internet ou em veículos impressos) ou fazendo entrevistas em áudio ou vídeo. Serão todos chamados de jornalistas pelo Poder360 aqui no Brasil, obviamente com uma descrição minuciosa do trabalho que fazem e se seus relatos têm algum viés ideológico. Recomenda-se, entretanto, a todos esses cidadãos que tenham cautela ao se apresentarem como jornalistas na terra de Camões. Se desejarem ter o luxo de usar a palavra “jornalista” ao descrever o ofício que praticam, devem estar dispostos a enfrentar a burocracia kafkiana que CCPJ segue de acordo com as leis locais, além de pagar as taxas necessárias e esperar a carteira de jornalista chegar um dia.