A fragilidade de controles operacionais da Dataprev (Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social) permitiu que entidades associativas fizessem descontos indevidos diretamente nas aposentadorias e pensões de beneficiários do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social). O alerta havia sido feito em auditoria do TCU (Tribunal de Contas da União) em junho de 2024.
A situação se soma a outras falhas recentes envolvendo a Dataprev, que está vinculada ao Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos. O consultor especializado em gestão de TIC (Tecnologia da Informação e Comunicação) e de modernização digital Rodrigo Assumpção preside a empresa pública. Tomou posse em abril de 2023.
O Poder360 lista algumas falhas nos últimos anos envolvendo a Dataprev. Eis abaixo:
- instabilidades e interrupções de serviços (2023–2024) – entre agosto de 2023 e dezembro de 2024, os sistemas utilizados pelo INSS apresentaram 1.466 horas de indisponibilidade, o que equivale a mais de 2 meses fora do ar. Essas falhas afetaram diversos serviços do INSS. O presidente da Dataprev, Rodrigo Assumpção, minimizou o impacto. Disse à Folha de S.Paulo que as falhas são “naturais” e fazem parte da modernização dos sistemas;
- vazamento de dados rende apelido de “Vazaprev” (2024) – em abril de 2024, o Ministério da Previdência Social reconheceu problemas no sistema desenvolvido pela Dataprev, prejudicando o acesso de beneficiários a pedidos de aposentadoria e outros auxílios. O Poder360 apurou que as falhas incluíam vazamento de dados, o que fez a empresa ser chamada internamente no ministério de “Vazaprev”;
- erro em laudos médicos (2024) – em maio de 2024, a Dataprev identificou um erro técnico durante a atualização do sistema de reconhecimento de direitos para benefícios por incapacidade. Essa falha fez com que alguns laudos médicos periciais do app Meu INSS saíssem com mensagens de teste, como “blá-blá-blá”, sem pareceres oficiais. A falha foi corrigida, mas resultou em constrangimento entre os profissionais envolvidos;
- apagão de estatísticas (2024) – em julho de 2024, o Ministério da Previdência Social enfrentou dificuldades para acessar o Suíbe (Sistema Único de Informações de Benefícios), administrado pela Dataprev. Isso resultou na suspensão da publicação do Beps (Boletim Estatístico da Previdência Social), importante para o acompanhamento da evolução dos benefícios. O problema foi atribuído a mudanças nos protocolos de segurança implementadas pela Dataprev, que dificultaram o acesso de servidores do ministério ao sistema;
- problemas em sistema de autenticação (2024) – em 20 de agosto de 2024, o Gerid (Sistema de Autenticação de Acesso) apresentou falhas técnicas que impactaram o acesso a sistemas essenciais da Previdência Social, como o portal CNIS e o Sibe (Sistema de Benefícios). A instabilidade durou pouco mais de 7 horas e afetou diretamente o atendimento aos cidadãos realizado pelos servidores do INSS e da perícia médica federal. Há relatos de falhas no sistema de autenticação em outros períodos.
DESCONTOS INDEVIDOS
O relatório do TCU também indicava que os processos para que fossem feitos empréstimos consignados e descontos das mensalidades associativas na folha de pagamento de beneficiários “apresentaram falhas”. “Principalmente no caso do desconto de mensalidade de associações e sindicatos, o processo é mais vulnerável”, afirma trecho. Eis a íntegra (PDF – 1 MB) do documento.
O TCU sinalizou que a Dataprev contribuiu para a manutenção do esquema ao executar os comandos das entidades sem verificar a origem ou legitimidade das autorizações.
As entidades envolvidas enviavam mensalmente arquivos à Dataprev com os nomes dos segurados e os valores a serem descontados. No entanto, não havia uma checagem prévia para verificar se os aposentados autorizaram de fato tais descontos.
“Como são as entidades que enviam as listagens de inclusão e exclusão dos descontos, e as autorizações ficam com elas, o INSS e a Dataprev só tomam conhecimento de um desconto indevido se o segurado reclamar”, diz o relatório.
A inspeção também dizia que o instituto não tinha a capacidade de recepcionar os termos de filiação e de autorização de descontos das mensalidades associativas. Em reunião com auditores, o INSS admitiu que não exigia os documentos de autorização no momento do processamento, confiando na boa-fé das associações.
Em resposta à fiscalização, INSS e Dataprev reconheceram as falhas e informaram que pretendem desenvolver um sistema que permita o envio, armazenamento e verificação das autorizações de forma segura. A medida mais esperada era a exigência de reconhecimento biométrico, já usado nos empréstimos consignados, também para as adesões associativas.
Em 15 de abril de 2024, na reunião que encerrava a inspeção, a Dataprev e o INSS disseram que não havia prazo definido para implementação dessa ferramenta.
PEDIDO DE AUDITORIA
A auditoria se deu a partir de um requerimento do deputado Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE), em agosto de 2023, que pedia “apuração de irregularidade no âmbito do INSS, entidades sindicais, associativas e instituições bancárias, com descontos indevidos nos proventos de aposentadoria de milhões de aposentados”. A então presidente da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, Bia Kicis (PL-DF), encaminhou o ofício solicitando a inspeção.
O requerimento solicitava medida cautelar para proibir empréstimo consignado atrelado à contribuição para entidade sindical. Isso se deu após denúncias de que havia venda casada envolvendo empréstimos consignados e filiação indevida a associações.
O TCU recomendou ações urgentes para proteger os segurados e evitar que o sistema continuasse sendo usado para fraudes, mas a unidade técnica não considerou haver necessidade de medida cautelar em um 1º momento.
“Ao examiná-la, esta unidade técnica entendeu não estarem presentes os pressupostos para a concessão da medida cautelar pleiteada pelo solicitante, tendo em vista a inexistência dos elementos necessários para sua adoção”, declarou.
Depois a recomendação foi revista e houve a adoção da medida cautelar em acórdão quanto aos descontos de mensalidades associativas. A inspeção, contudo, considerou não haver requisitos para a concessão de medida em relação aos empréstimos consignados.
CRESCIMENTO EXPLOSIVO
O relatório mencionava o crescimento vertiginoso de algumas entidades, como a Ambec (Associação dos Aposentados Mutualistas para Benefícios Coletivos), que passou de 3 associados em 2021 para 600,6 mil em 2023.
Em 2021, a entidade não havia tido repasses. Em 2023, arrecadou R$ 90,4 milhões.
Os repasses aumentaram proporcionalmente no total envolvendo associações e sindicatos: de R$ 544,7 milhões em 2021 para mais de R$ 1,5 bilhão em 2023.
CONSIGNADOS
Ao menos 35.000 beneficiários fizeram reclamações no site consumidor.gov.br em 2023 quanto a descontos indevidos, segundo relatório do TCU (Tribunal de Contas da União). Eis a íntegra (PDF – 1 MB).
No mesmo ano, houve a movimentação de R$ 89,5 bilhões em empréstimos consignados.
RESPONSABILIDADES
Em setembro de 2024, o sistema desenvolvido pela Dataprev –”Portal de Desconto de Mensalidade Associativa”– entrou no ar para que os descontos de mensalidades associativas só fossem feitos depois de autorizados pelos beneficiários. A medida incluía assinatura eletrônica e validação biométrica.
Em resposta a requerimento de informações da deputada Júlia Zanatta (PL-SC), a Previdência encaminhou um parecer do ex-presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, em que dizia que o INSS não tinha “responsabilidade solidária” sobre os descontos. Afirmou ainda que a Dataprev é “é responsável por toda a operação sistêmica e processamento dos descontos”.
SAÍDA DO PROGRAMA DE DESESTATIZAÇÃO
Em 16 de janeiro de 2020, o então presidente, Jair Bolsonaro (PL), incluiu a Dataprev no Programa Nacional de Desestatização.
Em 6 de abril de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) excluiu a empresa pública do programa de privatização do governo.
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
Em 17 de janeiro de 2025, Stefanutto disse que o governo federal contratou com custo de US$ 10,5 milhões (R$ 59,4 milhões na cotação atual) uma inteligência artificial na tentativa de combater fraudes em benefícios sociais e de aposentadoria. O pagamento seria feito em 18 parcelas.
A ferramenta foi desenvolvida por uma grande empresa norte-americana que atua no ramo. O valor foi informado ao Poder360 durante uma entrevista exclusiva em 17 de janeiro de 2025.
“Queremos pôr nos processos de trabalho, quer pôr IA [Inteligência Artificial] para verificar no sistema a concessão de benefício fora do padrão para você bloquear. Tem um potencial muito grande, se for bem usada aqui no INSS”, declarou Stefanutto.
Uma inteligência artificial simula habilidades humanas a partir do aprendizado por sistemas computacionais. A ideia era que a tecnologia comprada pelo governo começasse as operações ainda no 1º semestre de 2025, com a implementação em duas etapas.
Em 23 de abril, Stefanutto foi alvo da operação “Sem Desconto”, que investiga fraudes em aposentadorias e pensões. A ação mostrou que havia descontos ilegais de mensalidades associativas.
Ao todo, o valor arrecadado por essas associações foi de R$ 6,5 bilhões de 2019 a 2024. Stefanutto pediu demissão no mesmo dia.
O então ministro da Previdência, Carlos Lupi, entregou o cargo em 2 de maio, 9 dias depois da operação.
OUTRO LADO
O Poder360 entrou em contato com a Dataprev para saber se a empresa pública tem interesse em se manifestar sobre as falhas citadas e sobre os apontamentos da Corte de Contas. Também procurou o INSS para obter uma posição sobre o que é mencionado em relatório do TCU.
Não houve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.