Em agosto de 2023, o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a constitucionalidade da Lei 13.964/2019, prevista no Pacote Anticrime, mas vetou e alterou partes que desagradaram especialistas. Segundo advogados criminalistas, o Supremo “retalhou” a proposta necessária para coibir parcialidades judiciais.
Na prática, a regra determina que cada processo penal seja acompanhado por 2 juízes: enquanto o juiz de garantias acompanha a fase de inquérito, ou seja, de investigação, o juiz de instrução e julgamento atua depois de denúncia do MP (Ministério Público), momento em que a investigação se torna ação penal.
Contudo, a Corte alterou artigos chaves, abrindo precedente para a parcialidade do julgamento. Um deles: o artigo 3º-C, onde o STF trocou o recebimento da denúncia como fase que cessa a atuação do juiz das garantias para o oferecimento da denúncia. Ou seja, quem a receberá, agora, será o juiz que julgará o processo.
Art. 3º-C: “A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o oferecimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código”.
A fase de oferecimento da denúncia vem antes do recebimento. Isso porque o MP (Ministério Público) oferece a denúncia e, depois, o juiz escolhe se vai aceitar ou não a acusação (fase de recebimento). Nessa fase, o magistrado analisa se há materialidade e indícios de autoria.
O problema da modificação, para os especialistas, é que o intuito do juiz das garantias é justamente separar do juiz do julgamento o contato com as informações prévias à denúncia para evitar a contaminação do juízo.
Como declarou o especialista em direito processual penal Aury Lopes Jr ao Poder360, o STF “retalhou” o juiz das garantias e o Pacote Anticrime. “Não tinha espaço na lei para cessar a competência do juiz das garantias no oferecimento. O juiz do processo receber a denúncia não é o ideal, porque receber ou não a acusação já demanda um alto grau de valoração e tem um risco, sim, de contaminação no julgamento”, afirmou.
O maior erro do STF, segundo ele, foi considerar inconstitucional “algo primário”, que é a exclusão física dos autos do inquérito do processo de julgamento.
A Corte declarou inconstitucional o artigo 3o – C, parágrafos 3º e 4º do CPP, que garantiam as informações de competência do juiz das garantias –que a priori estariam só à disposição da defesa e do MP– não seriam repassadas aos autos do processo enviado ao juiz do julgamento, para evitar contaminação.
Outro erro para a garantia da imparcialidade, diz Lopes Jr., foi declarar inconstitucional o art. 3º D. O dispositivo dispõe que o juiz que, na fase de investigação, cometer qualquer ato incluído na competência do art. 4º e 5º do código, ou seja, de competência do juiz das garantias, ficará impedido de funcionar no processo.
Para o advogado, portanto, ainda que o juiz das garantias tenha sido regulamentado para ministrar sobre a fase investigatória, o STF permitir que o juiz da instrução tenha acesso ao argumento acusatório ofertado pelo Ministério Público é “totalmente contraditório”.
“Como jurista, eu não consigo entender metade do que o Supremo fez. Porque metade do que foi feito não foi controle de constitucionalidade, foi dizer apenas ‘gostamos ou não e vamos reescrever o artigo’. Tem muita coisa ali que jamais seria inconstitucional, e só o Supremo viu isso”, ressalta.
Existe ainda outro ato contraditório, de acordo com o especialista em direito penal André Damiani, que é a possibilidade do juiz do julgamento produzir provas. Os ministros fizeram interpretação conforme à Constituição do artigo 3º-A do CPP, determinando que o juiz, pontualmente, e nos limites da legalidade, poderá determinar diligências suplementares para dirimir dúvida sobre ponto relevante, no momento de proferir decisão.
Para Damiani, “se a ação penal não restou provada e se a investigação trouxe mínimos subsídios a uma denúncia”, não deve ser papel do magistrado acionar socorro do MP.
Existe no meio jurídico uma expressão latina que rege o ordenamento, chamada “in dubio pro reo” (em tradução livre, “na dúvida, a favor do réu”). O princípio expressa que, havendo dúvida no processo penal, por falta de provas, a interpretação do Juiz deve ser em favor do acusado.
Damiani afirma que a medida preserva uma “opção de saída” para que os magistrados possam preservar um procedimento comum na Corte [abertura de diligência], principalmente feito por Moraes. O ministro é relator do inquérito das fake news e protagonizou decisões controversas na Suprema Corte ao ser vítima dos casos, investigar e julgar os processos.
Segundo os especialistas, o posicionamento do STF é “protagonista” e endossa o falso entendimento de que o juiz é o centro do julgamento, quando deveriam ser as provas. “Há uma falta de compreensão do nosso sistema acusatório, que não é problema especificamente do juiz das garantias, mas do entendimento de que quem produz a prova é o MP, e pronto”, disse.
Implementação
O STF determinou em 23 de agosto do ano passado que os tribunais implementem o juiz das garantias em um prazo de 12 meses, podendo ser prorrogado, sob justificativa, por mais 12 meses. Logo, os tribunais de Justiça devem implementar o dispositivo até o final do mês de agosto deste ano de 2024.
O TSE, por contas das eleições municipais, deu, em 7 de maio, prazo de 60 dias para a implementação, portanto, os tribunais eleitorais têm até este sábado (6.jul) para a implementação. O CNJ foi responsável por regulamentar o juiz das garantias. Resolução foi aprovada em 28 de maio.
Segundo os especialistas, o prazo não deve ser um problema, dado que a magistratura se prepara para a implementação desde 2019, quando o juiz foi criado. Em alguns Estados, como Rio de Janeiro e São Paulo, já existem tribunais com modelo similar ao juiz das garantias, onde departamentos cuidam só dos inquéritos.
“Me parece que o TSE está muito preocupado pensando na próxima eleição municipal. Então deve se pensar no juiz que cuida da apuração dos fatos, que podem ser crimes eleitorais, medidas eventualmente de suspensão, questões relacionadas ao fundo partidário, questões cautelares e preventivas que têm impacto muito grande, logo, o juiz das garantias deverá ter muita responsabilidade”, diz Damiani.
Em relação a municípios pequenos com vara única, os especialistas dizem que não deverá ser problema, pois a outra parte do processo poderá fazer uma distribuição cruzada. Ou seja, o juiz de uma cidade próxima julga o processo. Outra possibilidade, apontada por Lopes Jr., é a criação de uma central online. Segundo ele, desde a pandemia, o método online da Justiça é eficiente.
Eis como é prevista a atuação do juiz de garantias:
- Início da investigação – a Polícia e/ou Ministério Público inicia(m) uma investigação de suspeita de crime;
- Juiz de garantias começa a atuar – se for necessária alguma medida, como quebra de sigilos, operações de busca e apreensão e decretação ou suspensão de prisões cautelares, será o responsável pelas decisões nessa fase de investigação;
- Direitos e legalidade preservados – caberá ao juiz de garantias também decidir pedidos sobre supostas ilegalidades nas apurações e sobre eventuais descumprimentos de direitos dos investigados;
- Denúncia – se o Ministério Público denunciar o suspeito, o juiz de garantias decidirá se deve ou não ser aberto processo criminal;
- Julgamento do processo – depois da abertura do processo, o caso passará para um segundo juiz, que julgará se o acusado deve ou não ser condenado criminalmente.
ENTENDA
A proposta do juiz de garantias foi aprovada pelo Congresso Nacional em dezembro de 2019 e sancionada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), por meio do Pacote Anticrime, enviado pelo ex-ministro e hoje senador Sergio Moro (União Brasil-PR).
Contudo, Moro foi contra a criação do juiz das garantias. Essa figura do juiz da investigação foi incluída no pacote por emenda de autoria do deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ) e mantida pelo ex-presidente. Essa divergência foi considerada polêmica por ter sido uma das únicas medidas do ex-presidente criticadas por Moro na época.