Nas relações exteriores, Lula não é um realista, mas um idealista, como Bolsonaro

Para muitos, política externa do país não deve ter estados de alma, apenas interesses

1. Lula da Silva recebe Nicolás Maduro com pompa e circunstância. E amigos brasileiros, que não gostam do meu rosnar, se alentam com minhas alegadas incoerências. “Você não é um realista em política? Então está aí o realismo”, dizem eles, com um sorriso de triunfo.

Entendo o sorriso. A política externa brasileira não deve ter estados de alma; apenas interesses.

A imagem simula um anúncio publicitário do boneco promocional de Nicolás Maduro (que, de fato, existe na Venezuela) em que ele é representado como um super herói chamado "Super Bigote"

Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho de 5 de junho de 2023 – Angelo Abu

E, por esse prisma, que interessa uma China, uma Rússia ou uma Venezuela autocráticas? Tudo o que interessa é a balança comercial do Brasil. Quem tem valores passa fome.

Concordo com tudo e mantenho meu ceticismo com os idealistas. Jair Bolsonaro era um deles: sua cruzada ideológica contra Pequim, em patética imitação do governo Trump, era infantil e economicamente irracional.

Acontece que o realismo, como teoria das relações internacionais, não se confunde com o cinismo. Um cínico, na primorosa definição de Oscar Wilde, sabe o preço de tudo e o valor de nada. Um realista também sabe o preço de tudo; mas o seu silêncio em matéria moral não significa que ele se esqueceu do valor das coisas.

Quando os Estados Unidos retomaram as relações diplomáticas com a China comunista, não foi por afinidade com o regime. No contexto da Guerra Fria, em que o inimigo do meu inimigo meu amigo será, a China era um importante aliado no confronto com a União Soviética.

Além disso, a administração Nixon não era cega para as vantagens econômicas do mercado chinês e para a possibilidade de acesso às suas vastas matérias-primas.

Mas em nenhum momento encontramos no presidente Richard Nixon ou no seu conselheiro Henry Kissinger, posteriormente secretário de Estado, o tipo de loas a Mao Zedong que Lula faz a Nicolás Maduro.

Os crimes cometidos na China durante a Revolução Cultural, por exemplo, não eram “narrativas”. Eram verdades incontroversas, tal como os crimes na Venezuela, apesar de omitidas na hora da negociação entre as partes.

O problema de Lula com os regimes autocráticos não está no fato de ele ser um realista, ou seja, alguém que entende que o mundo e a vizinhança não são uma cópia das nossas sociedades.

Está, ironicamente, no fato de ele ser um idealista, permitindo que afinidades ideológicas se intrometam na relação entre Estados. Esse amadorismo, que existia com Bolsonaro, continua vivo com Lula da Silva.

2. Ambiguidade, onde está a ambiguidade na avaliação crítica das artes?

Mistério. A atitude típica do crítico contemporâneo, ou até do mero consumidor, é conferir até que ponto a obra que acabou de ver se encaixa na sua estreita visão do mundo.

Aconteceu com o final de “Succession”, que desanimou muitas feministas. Se o leitor ainda não assistiu à série de Jesse Armstrong, o melhor é parar de ler. Vem aí “spoiler”.

Eis o problema: quando todos esperavam que a empresa familiar ficasse nas mãos dos descendentes de Logan Roy, foi Shiv (a maravilhosa Sarah Snook) a sabotar esse projeto.

Fez isso por despeito, uma vez que não seria a escolhida para liderar a empresa do pai. Ou por inveja do irmão Kendall, o putativo líder. Ou simplesmente por irracionalidade —e Jesse Armstrong, nesse quesito, mostrou toda a sua misoginia ao colocar nos ombros caprichosos de Shiv a responsabilidade pelo fracasso.

A atriz Sarah Snook, como Shiv, em cena de ‘Succession’ – Divulgação/HBO

Essa interpretação de “Succession” seria reforçada pela magistral sequência em que Shiv aceita continuar com Tom, o novo CEO da empresa. O rosto de Shiv, mistura de fracasso e infelicidade, é a prova dessa irracionalidade.

É uma interpretação legítima, reforçada pela gravidez de Shiv: a criança talvez precise de um pai etc. etc.

Mas existe outra interpretação. Sabendo que não seria a CEO da empresa e que essa honraria seria para o marido, o inútil Tom Wambsgans, Shiv fez os seus cálculos e, com impecável instinto felino, descartou os irmãos para apostar no cavalo vencedor.

É um prêmio de consolação, admito; mas, conhecendo as debilidades de Tom e a personalidade forte de Shiv, não custa imaginar que será ela a conduzir a orquestra nos bastidores.

Se aceitarmos a ambiguidade de “Succession”, Shiv não é apenas a vencedora; é uma dupla vencedora, porque vendeu a empresa (a bom preço) e continuará a influir nela, por interposta pessoa.

Haverá exemplo maior de vitória feminista?

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